Foram registradas 335 pessoas a mais nessa condição até março, aumento de 31% na comparação com o mesmo período do ano passado
Nour Koeder, 33 anos, figurinista, precisou sair da Síria e chegou ao Brasil sem a família, que se estabeleceu na Jordânia; oportunidade de continuidade da vida acadêmica foi essencial para que ele se adaptasse ao país: “Consegui uma bolsa de estudos através da CSVM em Artes Cênicas na Unicamp. Comecei a faculdade em 2020 e estou quase me formando”, contou (Alessandro Torres)
A cidade de Campinas teve uma alta do número de novos imigrantes registrados na comparação entre o primeiro trimestre de 2025 e de 2024. Neste ano, foram 335 novos registros, elevação de 31% em relação aos 255 do mesmo período do ano passado. Já as solicitações de refúgio se mantiveram estáveis: 88 entre janeiro e março deste ano e 89 nos mesmos três meses de 2024. Os dados são do DataMigra, plataforma do Governo Federal com os registros migratórios em todo o território nacional.
São pessoas que chegam em Campinas fugindo de conflitos bélicos ou em busca de condições melhores de trabalho e renda. De acordo com a Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), refugiados são pessoas que estão fora de seu país de origem devido a fundados temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política, como também devido à grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados. Já os apátridas são pessoas que não têm sua nacionalidade reconhecida por nenhum país.A apatridia ocorre por várias razões, como discriminação contra minorias na legislação nacional, falha em reconhecer todos os residentes do país como cidadãos quando este país se torna independente (secessão de Estados) e conflitos de leis entre países.
Geralmente uma pessoa nessas situações corre risco de vida, especialmente quando ela é forçada a se deslocar por perseguições étnicas, políticas, religiosos ou de gênero. “É uma situação de alto risco, a exemplo das informações que temos de pessoas que são massacradas sem possibilidade de defesa, como acontece no Afeganistão e na Faixa de Gaza”, afirmou a presidente da Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM) da Unicamp, Ana Carolina Delfim Maciel.
Já o imigrante assim o é por uma questão de escolha. O principal motivo é a questão econômica, quando ele se desloca de maneira não forçada a fim de conseguir uma condição melhor de trabalho em outro país. As principais origens das pessoas que se deslocam como imigrantes para Campinas são Colômbia, Haiti e Venezuela. Nos pedidos de refúgio, são pessoas de Cuba, Afeganistão e Irã. Ana Carolina explicou que de modo geral o Brasil não é o destino mais procurado por pessoas em deslocamento. Porém, aqueles que aqui chegam normalmente se deslocam para os grandes centros mais desenvolvidos, como é o caso do Estado de São Paulo, que tem Campinas como uma das maiores cidades.
As pessoas que chegam ao país por deslocamento forçado, ou seja, fugindo de uma situação de violência, devem solicitar refúgio no Comitê Nacional para os Refugiados (Conare). Em Campinas existe um núcleo do Conare localizado na Rua Dr. Quirino, 1080, quarto andar. O órgão também pode ser acessado no site https://sisconare.mj.gov.br/conare-web/login?1.
Os imigrantes devem procurar os serviços públicos com o objetivo de regularizar sua situação de estadia. O Centro de Referência do Imigrante, Refugiado e Apátrida da Prefeitura de Campinas presta esse atendimento. Nele são oferecidos serviços como Documentação Migratória, Serviço Social, Orientação, Inscrição para o Curso Básico de Português e Autorização de Residência. O escritório está localizado na avenida Francisco Glicério, 1269, quarto andar. A Prefeitura também realiza ações especiais com foco nesse público, como a oferta de emprego para imigrantes e refugiados por meio de um feirão do Centro Público de Apoio ao Trabalhador (CPAT). A ação ocorreu no final de 2024 em parceria com a Organização Internacional das Migrações (OIM), agência da Organização das Nações Unidas (ONU). Na ocasião, 183 pessoas foram atendidas com 222 entrevistas de emprego agendadas.
HISTÓRIAS
Em busca de oportunidades de trabalho para recomeçar a vida, Adriel Antofagli, 24, junto com a mãe, Josimi, e o irmão, Fran, foram até o Centro de Referência para a regularização de seus documentos. Eles saíram de Cuba no ano passado devido à falta de oportunidades de trabalho e por discordarem da maneira como o atual governo administra o país. “É muito fechado e nos faltam muitas oportunidades”, relatou Adriel. A família foi primeiro para o Suriname de barco. Eles perceberam ao chegar no país que não conseguiriam conquistar o sonho idealizado de um trabalho digno. Foi então que entraram no Brasil pelo Amazonas e seguiram de ônibus até Goiânia, onde receberam uma indicação para virem até Campinas. De Oiapoque-AP até Campinas foram cinco dias de viagem. Eles chegaram à metrópole do interior paulista há duas semanas e já acionaram o serviço da Prefeitura para conseguirem regularizar a documentação. “Queremos acertar todos os documentos para conseguir trabalho e viver dignamente”, comentou a mãe. O filho mais velho, Fran, 31, contou que em Cuba trabalhava como tatuador. Ele deseja conhecer os estúdios da cidade. “Aos poucos, com paciência, quero voltar a fazer tatuagem. No começo é difícil, mas quem sabe?”
A busca pela prosperidade e uma vida melhor em outro país não é algo contemporâneo. O proprietário de um restaurante de comida libanesa, Maurício Moutarda, 57 anos, contou a história do pai à reportagem. Por falta de oportunidades profissionais no Líbano, Hassan Mohamed Ali Mourtada saiu em 1959 do seu país natal para buscar melhores condições de vida em Campinas. Ele se inspirou em um parente que possuía um armazém no Mercado Municipal, o Mercadão. O primeiro negócio de Hassan foi um bar que ficava dentro da Torre do Castelo. “Isso foi antes do ponto se tornar turístico”, comentou Maurício. Com o tempo, os clientes do local ficaram amigos de seu pai e o ensinaram a falar português. “O meu pai falava que o Brasil é maravilhoso. Veja, ele, um libanês muçulmano, se apaixona por uma descendente de italianos católicos. O resultado foi que eles se casaram e meu pai virou católico.”
Em 1984 o casal adquiriu o restaurante de comida libanesa que existe até hoje no Centro da cidade. “Existe espaço para todo mundo no mercado. O meu pai falava que quando você é aceito também passa a agir com tolerância, e, assim, podemos coexistir.”
PROCESSO SELETIVO
Os estudantes estrangeiros em situação de refúgio ou de risco em seus países de origem têm a oportunidade de participar de um processo seletivo para estudar na Unicamp. Em maio, foi realizado o primeiro destinado a esse público. O objetivo é completar as vagas remanescentes, aquelas que não foram preenchidas dentro do processo padrão de vestibular. Foram 45 vagas ofertadas em 26 opções diferentes de cursos. Ao todo, 289 estrangeiros se inscreveram. De acordo com o diretor da Comissão Permanente para Vestibulares da Unicamp (Comvest), José Alves de Freitas Neto, cerca de um terço desses alunos já residem no Brasil. “Dessa forma é mais fácil, pois já possuem a documentação necessária, que é o nosso maior entrave para o ingresso.”
O diretor explicou que é obrigatório que os candidatos tenham cursado ao menos um semestre em uma instituição de ensino superior. Essa foi a primeira vez que um processo seletivo da Unicamp ocorreu de forma virtual, o que foi feito para que pessoas de fora do Brasil pudessem participar do processo. Como exemplos da procura internacional pelas vagas, a Comvest destacou que pessoas do Irã, Nigéria e Afeganistão realizaram o teste.
A lista com os 31 aprovados na etapa da prova será divulgada em 14 de julho. Os novos alunos iniciarão as aulas no primeiro semestre de 2026. Porém, os estudantes que já estão no Brasil, poderão no segundo semestre deste ano frequentar a disciplina de língua portuguesa para estrangeiros como alunos especiais. Segundo Neto, a partir dessa primeira experiência a universidade buscará aperfeiçoar o processo com o objetivo de ampliar o acesso às pessoas em situação de refúgio.
Por meio da Cátedra Sérgio Vieira de Mello, a Unicamp vem se destacando na promoção do acesso à educação superior para pessoas refugiadas. Em vigência na Universidade desde 2019, a cátedra é uma iniciativa do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, em cooperação com outras instituições de ensino superior.
A presidente da cátedra na Unicamp, Ana Carolina Delfim Maciel, destacou que a universidade constrói um bom exemplo em acolher, e dar a oportunidade de estudar, pessoas que estão em situação de refúgio. “Para a universidade essa diversidade é muito importante, pois significa uma internacionalização decorrente do acolhimento de pessoas de vários países.”
Ana Carolina reforçou as políticas de permanência da universidade. Independentemente se a pessoa está em deslocamento forçado, o objetivo é apoiar as pessoas em situação de vulnerabilidade que estudam na instituição. “Ao aluno em condição de risco é garantido o acesso aos restaurantes da universidade, assim como ao transporte e à moradia estudantil.”
INCLUSÃO E RECOMEÇO
A inclusão de estrangeiros na vida acadêmica pode ser fundamental para que a pessoa consiga recomeçar a vida no novo país. Foi assim com Nour Koeder, 33. Ele e a família fugiram da Síria para o Líbano em 2012. Depois, a família se estabeleceu na Jordânia, enquanto Koeder foi para São Paulo. Ele exerceu vários trabalhos para sobreviver enquanto aprendia a falar português. Ele se formou em Moda na Síria e tinha o desejo de continuar os estudos na área no Brasil. “Ainda em São Paulo consegui uma bolsa de estudos através da CSVM em Artes Cênicas na Unicamp. Comecei a faculdade em 2020 e estou quase me formando.”
Para se manter em Campinas, Koeder trabalha como figurinista e começou a desenvolver projetos teatrais em conjunto com seu grupo das Artes Cênicas. “Quero continuar atuando como ator e figurinista e também pretendo criar uma marca de roupa”, finalizou.
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