ELA CHEGOU LÁ

Contra tudo e contra todos, ela chegou lá

Estudante conta como venceu as dificuldades financeiras e as barreiras do preconceito racial para conquistar a tão sonhada vaga de medicina na Unicamp

Erick Julio/ Correio Popular
29/03/2021 às 16:59.
Atualizado em 21/03/2022 às 23:06
Janaína Alves, 27 anos, é formada em educação física pela PUC-Campinas e foi aprovada em medicina na Unicamp: como médica, seu objetivo é se dedicar ao SUS para contribuir com um atendimento acessível a todos (Kamá Ribeiro/ Correio Popular)

Janaína Alves, 27 anos, é formada em educação física pela PUC-Campinas e foi aprovada em medicina na Unicamp: como médica, seu objetivo é se dedicar ao SUS para contribuir com um atendimento acessível a todos (Kamá Ribeiro/ Correio Popular)

Por quantas médicas negras ou médicos negros você já foi atendido na sua vida? O questionamento que viralizou nas redes sociais em 2018 passou pela cabeça da estudante Janaína Alves, 27 anos, aprovada no Vestibular 2021 de Medicina da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Moradora do Parque da Figueira, em Paulínia (SP), a jovem conta que venceu as dificuldades financeiras para conseguir a tão sonhada aprovação "na principal universidade da América Latina".

De uma família de origem simples de Campo Limpo Paulista (SP), Janaína, que é formada em educação física pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) por meio do Programa Universidade para Todos (Prouni), celebra a representatividade e o caráter de superação da sua conquista.

"Eu já estava atualizando o site desde cedo, pois a Unicamp sempre foi o meu sonho. Quando vi o resultado eu fiquei em choque ao ler a palavra 'convocada'. Eu jurava que não tinha capacidade de passar, apesar de reconhecer todo o esforço que fiz. Mais do que um sonho, a aprovação foi muito simbólica para mim, pois recebi mensagens de outras jovens negras que falaram que se inspiraram na minha história. E isso me fez lembrar que eu nunca tive uma consulta com um médico negro. Apesar da inclusão que foi feita pela política de cotas, acredito que isso ainda não repercutiu no mercado de trabalho", aponta a jovem.

O relato de Janaína ilustra bem a realidade constatada pelos dados da Demografia Médica 2020, desenvolvido pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) em cooperação com a Universidade de São Paulo (USP). De acordo com o levantamento, o Brasil atingiu, no ano passado, a marca histórica de meio milhão de médicos. Apesar dos resultados não informarem a cor dos profissionais inscritos, dados do Censo da Educação Superior mostram que os estudantes de medicina negros são minoria.

De 2009 a 2019 o número de alunos negros matriculados em um curso superior cresceu 620%, segundo o censo, por conta das políticas de cotas raciais implementandas pelo governo federal no início da última década. Apesar dessa expansão do acesso à universidade, apenas 25% dos estudantes de medicina são negros, de acordo com o levantamento.

Para Janaína, por sua vez, estudar medicina na Unicamp representa "ocupar um espaço que tem que ser meu e de todos". Ainda segundo a jovem, a aprovação no vestibular mais concorrido da universidade simboliza também uma "nova perspectiva de futuro" para muitos jovens de famílias menos favorecidas economicamente.

"Na periferia tem muita falta de representatividade. Quando vamos no hospital ou no posto de saúde, os médicos são muito distantes e os jovens não têm muito contato com outras profissões. Eu mesmo sou filha de uma faxineira e de um pedreiro. Minha irmã trabalhava como atendente de telemarketing e quando a professora perguntava na escola o que queríamos ser quando crescer, eu respondia atendente de telemarketing", diz Janaína, que explicou que a faculdade de educação física a ajudou na busca pela medicina.

"Eu fui a primeira da minha família a ter um diploma de faculdade. Hoje, minha irmã também é formada em educação física. Em 2014, eu consegui a bolsa pelo Prouni sem ter nenhuma noção do que era uma universidade. Eu vivia com minha mãe e irmãos em um cômodo, após meu pai ter nos abandonado em Campo Limpo Paulista. Ao entrar na faculdade, eu conheci um novo mundo. Entrar na PUC serviu para eu perceber que existe muita coisa e que eu era capaz", recorda a jovem, que revelou que durante o primeiro semestre de educação física vinha para Campinas e voltava para a sua cidade todos os dias.

Formada na PUC, Janaína conta que trabalhou dando aulas de zumba em academias, curso no qual é formada. Apesar de gostar da dança, a jovem recorda que estava "meio perdida" em relação a carreira profissional e já tinha alimentado o sonho de cursar medicina após trabalhar com crianças e adolescentes com deficiência. "Quando me formei em licenciatura de educação física, eu fiquei num impasse. Estava na dúvida se faria o bacharel do curso e uma especialização, para poder ter outras perspectivas profissionais na área, ou outra graduação. No fim da faculdade na PUC, eu queria entender mais os processos do corpo humano e, por isso, decidi cursar medicina", explica.

A decisão de Janaína teve o apoio da mãe Maria Joana da Cruz e do namorado Felipe Augusto Reque. A jovem conta que a mãe sempre a incentivou estudar e que o companheiro a ajudou nos custos do curso pré-vestibular. "Eu cheguei a estudar em um cursinho popular, mas precisava de algo mais intenso e específico para a prova da Unicamp. Foi aí que procurei o Cursinho Hexag Medicina. O curso é totalmente organizado e diferente de todas as escolas que já vi. Tive todo o suporte de professores, com plantões de dúvidas, mesmo após quando tivemos que fazer aulas à distância, por conta da pandemia", ressalta Janaína.

Dedicação

O coordenador do Hexag, Bruno Santana, fala com orgulho da jovem. De acordo com ele, a aprovação da Janaína é fruto da dedicação e do esforço que fez ao longo de 2020. "A Janaína é uma jovem muito dedicada e sempre foi estudiosa. Nós sempre ressaltamos a força que ela teve de ir atrás de um sonho, de voltar a estudar e conseguir uma aprovação tão difícil. Ela deixou todos nós muito orgulhosos", exalta Santana que explicou que a escola vinha se preparando desde 2018 para ter uma estrutura de ensino à distância.

"Quando a pandemia veio e com ela o isolamento, a gente conseguiu ter uma rápida adaptação porque estávamos implementando pouco a pouco uma plataforma específica para atividade além da sala. Hoje trabalhamos com um conceito dos alunos exercitarem tudo o que aprendem no dia, sempre com professores de plantões para dúvidas e orientação via vidoeconferência, além da nossa psicóloga", explica o coordenador que recordou da conversa de incentivo que teve com Janaína.

"A pandemia assustou alguns alunos, porque de fato o cenário era de muita indefinição. Eu sempre faço um trabalho de conversa com cada aluno e com a Janaína não foi diferente. Eu falei para ela não desanimar apesar de não termos perspectiva da volta da aula presencial. Lembrei ela do excelente histórico de notas e da importância de ter uma disciplina de horários para estudos. Ela teve um momento de virada e com a dedicação que mostrava, dava para ver que ela tinha uma energia de aprovação", diz.

As aulas no curso de medicina da Unicamp começaram no dia 15 de março. Após a primeira semana, Janaína revelou empolgação ao Correio Popular. "Eu estou achando incrível poder ter aulas com professores renomados que eu sempre via nas referências bibliográficas. As primeiras aulas têm sido de um conteúdo introdutório bem pesado, vamos ter bastante trabalho pela frente. Eu estou feliz e muito animada", conta a jovem que hoje diz, com orgulho, o que quer ser quando crescer.

"Eu quero poder contribuir com o SUS (Sistema Único de Saúde). Ele representa uma forma de acesso à saúde para as pessoas que não tem condições de arcar com os serviços. A saúde não pode ser uma mercadoria, como vemos nos Estados Unidos. Tem que ser algo universal, para garantir que todas as pessoas possam ser atendidas da maneira mais humana", exalta Janaína.

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