Não havia moça bonita que passasse despercebida aos olhos do simpático personagem campineiro
Nascido João Lopes de Camargo, Mané Fala Ó passava o dia perambulando pelas ruas da cidade atrás de um simples "ó" dos campineiros (Cedoc/RAC)
Os campineiros com menos de 35 anos provavelmente não tiveram o privilégio de conhecer personagens históricos e popularescos da nossa cidade, como Gilda e Mané Fala Ó, que andavam pelo Centro de Campinas com status de personalidade. Cada um com seu delírio e ingenuidade deixou uma marca no imaginário popular. Ambos remetem aos tempos em que Campinas era diferente. As pessoas passeavam pela cidade de forma mais relaxada, despreocupadas. Claro que existiam crimes, assaltos, mas nada comparado com o medo da violência que a muitos sufoca nesta metrópole do século 21. Naquele tempo não havia tanta tecnologia, a rede social era formada pelo contato humano, o famoso olho no olho. Era mais fácil prestar atenção no que acontecia ao redor. Assim surgiam esses personagens urbanos. Gilda já foi retratada nesta coluna, por isso, nesta edição, vamos relembrar o Mané Fala Ó, ou mesmo apresentá-lo para aqueles que nunca souberam de sua existência. Seu nome era João Lopes de Camargo. Ele começou a rodar a região central a partir do final dos anos 1940, ainda na adolescência, meio desconjuntado. Pouco se sabia sobre sua vida. Diziam que ele era "meio pancada da cabeça" porque tinha sido acometido do "mal do sétimo dia" — comentários de época. O "mal" são duas doenças que antigamente atingiam os recém-nascidos com certa frequência nos primeiros sete dias de vida. Uma é o hoje raro tétano umbilical, causado em geral por falta de higiene dos instrumentos médicos e do local do parto. A outra é a doença hemorrágica do recém-nascido. A criança pode ter hemorragias por falta de vitamina K, que ajuda na coagulação do sangue. Ela é produzida pela flora intestinal. Atualmente, é comum as maternidades aplicarem injeção de vitamina K nas crianças logo após o parto. Diziam também que ele morava com um padrinho, no Cambuí. Tido como ingênuo, educado e solícito, vivia de ajudar os comerciantes da área central. Consta que também morou com uma tia no bairro Taquaral. Vendia jornal por aí para ajudar na renda. Também era figura constante nas bandas da Vila Industrial. Do pai e mãe ninguém nunca ouviu falar, menos ainda de sua origem. Mas era conhecido e querido por todos. Tanto que fizeram uma vaquinha para lhe comprar uma bicicleta preta, que muito lhe ajudou nos trabalhos e foi companheira de toda a vida. Passava o dia na rua, entrando e saindo de onde bem entendia. Era difícil alguém que não o conhecesse, já que ganhou fama por "aterrorizar" as moças da cidade. Não podia ver uma menina — principalmente as bonitas —, que logo ia lá: "Oi menina. Fala ó para mim, ó ó ó". Se a escolhida respondia, pronto, ele virava as costas e ia embora feliz, pulando, com seus trejeitos característicos. Agora, o inferno começava se a moça o ignorasse. A história dá conta de que seguia garotas em sua bicicleta por quilômetros em busca da bendita resposta. Dizem que pedalava atrás de bonde, de ônibus, não desistia até conseguir o tal cumprimento. E insistia: "Fala ó pra mim menina". Quem ainda mantém na memória o encontro com ele, mesmo passados pouco mais de 50 anos, é a especialista em Finanças aposentada, Glória Checchia, de 64 anos. Quando ela tinha entre 12 e 13 anos foi um dos alvos daquele personagem. "A gente morava perto do Bosque e eu desci para o centro da cidade para pagar uma conta para minha mãe. Um homem começou a me seguir e falava 'menina fala ó, fala ó, ó ó. Fala ó menina'. Eu comecei a andar rapidinho e ele atrás de mim, 'moça fala ó, fala ó ó ó'. Eu corri", conta aos risos. "De repente uma pessoa me parou e falou assim: 'menina fala ó, é o Mané. Só você falar ó pra ele parar de te seguir'. Eu parei, falei ó, ele virou as costas e foi embora. Esse era o Mané, ele assustava todas as meninas da cidade, mas era só falar ó que ele seguia o caminho dele. Uma grande figura", garante Glória. Mané largava a bicicleta na rua, entrava nas lojas, lanchonetes, todo mundo queria bater papo com ele, assistia suas travessuras com o público. Era pura alegria. Ninguém ousava mexer com sua bicicleta do lado de fora. Se alguém tentasse, sempre tinha um guarda de olho. Tragédia E assim Mané seguiu a vida toda. Quando a velhice chegou contam que ele abandonou o bordão que fez fama na cidade. Mané Fala Ó ficou mais calado. A situação se inverteu. As pessoas é que pediam para ouvir aquele pedido inusitado que tanto medo e, principalmente, risos despertava nas pessoas. Porém, na noite do dia 22 de dezembro de 2003, às vésperas do Natal, Mané Fala Ó foi atropelado por um Monza na Avenida Mirandópolis, na Vila Pompeia, região das Amoreiras. O motorista o socorreu para o Hospital Mário Gatti, mas ele não resistiu e morreu poucas horas depois, aos 72 anos. Naquele Natal a cidade sentiu que perdeu uma parte de sua inocência e irreverência. Campinas não foi mais a mesma. Grupo Rumo fez homenagem em disco Mané Fala Ó há décadas fazia parte do cenário urbano de Campinas e passou a ser parte da história. Por tudo isso, recebeu homenagens. No ano de 1988, o Grupo Rumo, formado em 1974 por estudantes, boa parte da USP, decidiu homenageá-lo. O grupo musical fazia releituras de grandes clássicos da Música Popular Brasileira. Mas naquele ano lançou um disco infantil intitulado Quero Passear, com 15 faixas. A terceira chamava "Mané Fala Ó" e retratava o ilustre cidadão de Campinas. Esse disco recebeu dois prêmios Sharp: Melhor Disco Infantil de 1988 e Melhor Canção Infantil pela música A Noite do Castelo. O álbum está disponível nas plataformas digitais. Já na década de 1990, Mané Fala Ó virou enredo da escola de samba campineira Rosas de Prata. Em 2010, o então vereador Antônio Francisco dos Santos, conhecido como Politizador, teve sua proposta de lei aprovada, denominando a Semana Municipal do Trânsito com o nome de Mané Fala Ó. O ex-vereador foi encontrado morto em sua casa no último dia 30 de junho, aos 78 anos.