Moisés Lucarelli ( Carlos Sousa Ramos/ AAN)
O Majestoso, inaugurado em 1948, não se limitava a um templo da bola. Era, de fato, a consagração do empenho dos próprios torcedores, gente que se oferecia para carregar pedra e amassar barro desde o lançamento da pedra fundamental. Os tratores e caminhões eram emprestados. Campanhas arrecadavam dinheiro para comprar cimento, ferro, tijolo... Foram sete anos de muito suor. Foto: Reprodução/Carlos Sousa Ramos/ AAN Moisés Lucarelli no começo da década de 50; Arquibancadas ainda não estavam totalmente acabadas Os apaixonados pela Ponte Preta, finalmente, se livravam da incômoda pecha de "time das 11 camisas". A fama cruel vinha de longe. O clube era pobre demais. Por causa de dívidas, perdeu o direito de mandar seus jogos em um campo que existia na Avenida Júlio de Mesquita. Toda verba que entrava no caixa vinha do bolso de 30 e poucos associados. Então, ter um estádio próprio virou questão de honra. E o herói da saga até hoje se confunde com a história do clube. Moisés Lucarelli nasceu em 1898, em Limeira, mas se mudou para Campinas quando tinha pouco mais de um ano. O drama, no entanto, é que seu pai morreu muito cedo e a mãe teve de cuidar sozinha dos sete filhos. Foto: Reprodução/Carlos Sousa Ramos/ AAN O joven Moisés Garoto, Moisés foi entregador de jornal. Adolescente, trabalhou como cobrador da Ponte. Ia de casa em casa receber mensalidades do minguado grupo de associados. Ao mesmo tempo, foi atendente de balcão de uma loja de material elétrico. Aí o rapaz virou patrão. O comércio funcionava na General Osório e vendia tudo o que era acessório de construção. Mas o dinheiro veio mesmo quando o cidadão inaugurou uma fábrica que colocou no mercado os modernos fogões elétricos. Adulto e com a conta bancária reforçada, Lucarelli juntou-se aos amigos Olímpio Dias Porto e José Cantúsio e organizou um grupo de pontepretanos apaixonados que adquiriu uma gleba de 34 mil metros quadrados de terreno brejoso na antiga Chácara Maranhão. A história é contada em detalhes por Neyde, filha de Moisés, uma senhorinha simpática e conversadeira, que mora em um edifício antigo do Centro. O prédio, erguido há quase 70 anos, leva o nome do pai famoso. Ah, um detalhe: o nome Moyses na portaria é com "y" mesmo, como na certidão de nascimento do homem. Foto: Carlos Sousa Ramos/ AAN Neyde, guardiã da memória do pai, Moisés Lucarelli Neyde Nogueira Lucarelli tem 84 anos. Usa cabelo branco arrumadinho, brincos e maquiagem leve. É elegante que só e parece ser bem mais jovem. Ela se divorciou há um tempão e não quis mais saber de marido. Os três filhos casaram, mudaram e a mulher ficou morando sozinha no apartamento enorme. O imóvel, aliás, daria uma reportagem à parte. Cortina xadrez na janela da cozinha, piso de madeira, pratos de azul-pombinho nas paredes, discos de música italiana no armário. Os cômodos são recheados de fotografias da família. Moisés Lucarelli, claro, é o personagem principal. Ele aparece menino, jornaleiro ainda, e moço, estilo galã de cinema. Está no balcão da loja, na viagem de férias com a mulher Maria, no almoço com filhos e netos. Ah, aparece já maduro, nas obras de conclusão do estádio. Mostrando as fotos, Neyde começa a chorar. Lembra que Moisés, quando menino, dividia com o irmão o único par de sapatos que a mãe tinha conseguido comprar. Por isso, calçava só um pé e amarrava um pano no pé descalço, dizendo a todo mundo que tinha se machucado. Só para sair de casa com roupa asseada e um pé do sapato novo. Foto: Reprodução/Carlos Sousa Ramos/ AAN Construção da arquibancada em 1956 Mas, deixando a emoção pra lá, ela segue mostrando o lar. As gavetas preservam centenas de recortes de jornais e revistas. Moisés é tema de todas as reportagens. A senhora guarda, por capricho, preciosidades como o cartão de visitas da empresa do pai, "a melhor e maior casa de artigos elétricos e sanitários em geral" e "fabricante dos afamados fogões elétricos". Também tem panfletos de matinês carnavalescas no estádio e muitas correspondências assinadas de próprio punho por Moisés. Como uma, de 1963, em que o cidadão abria mão de receber o dinheiro que investiu do próprio bolso nas obras do clube. E olha que era muito dinheiro: um quinto de todas as despesas do ano. "A minha mãe brincava. Dizia que o marido tinha uma amante e o nome dela era Ponte Preta", gargalha. Moisés Lucarelli se foi deste mundo em 1978. Nino, o irmão mais novo de Neyde, ainda tem um camarote no estádio. Quando dá, a senhorinha passa por lá e vê futebol. A paixão pela Macaca é igualzinha àquela que seu pai sentia.